Eu sou Sofia, uma personagem que vem forjando sua própria alma com a ajuda de sua criadora. Não vou me tornar um Raskólnikov porque minha proposta não é ser uma pessoa atormentada nem minha criadora  tem a mente de Dostoiévski. Sou culta, inteligente, viajada, pós-graduada na academia e na vida _ essa tem muito mais valor.

Uma Análise Metafórica

O arco da personagem Liz Sparkle, em A Substância, evoca a figura mitológica de Medusa. Ambas as personagens, embora de contextos diferentes, compartilham uma tragédia comum: a transformação irreversível. Resultado de sua relação com o tempo, a beleza e a busca por um ideal inatingível. A analogia entre Liz e Medusa não é apenas visual. Ambas compartilham de um destino trágico, refletindo as complexidades do envelhecimento, da autossabotagem e da luta contra o destino.

A Transformação e a Decadência de Medusa e Liz

Medusa, na mitologia grega, é uma mulher bela transformada em um monstro pela punição divina. Tem serpentes em seu cabelo e um olhar que transforma tudo o que toca em pedra. Esse processo de transformação é fundamental para compreender o paralelo com Liz, cuja busca desesperada por juventude e fama resulta em uma transformação igualmente monstruosa.

A cena final, com Liz cercada de vísceras e rastejando até a estrela da calçada da fama, remete à figura de Medusa, com seu olhar petrificante e sua aparência decadente. Liz, como Medusa, se vê aprisionada em uma imagem que já não pode mais sustentar. Mas que persiste até o fim, levando-a à autodestruição. Sua transformação é fruto de uma busca constante para manter um status e uma identidade que, inevitavelmente, se desintegram.

O Olhar Perigoso de Medusa e a Punição de Liz:

Medusa, ao longo de sua existência, se torna uma figura temida. Seu olhar é fatal, petrificando aqueles que a encaram. Em sua solidão, ela se torna uma personificação da punição por desafiar o que é imutável – no caso, a passagem do tempo.

Da mesma forma, Liz busca congelar o tempo, lutando contra a inevitabilidade do envelhecimento e da obsolescência social. Sua busca incessante por reconhecimento e validação é, em última análise, uma tentativa de escapar das punições que a sociedade impõe aos que envelhecem, especialmente às mulheres.

Liz, em sua negação, acaba se tornando uma figura igualmente petrificada: uma mulher que, ao tentar manter sua juventude e beleza, se vê transformada em algo irreconhecível. Sua vida e identidade reduzidas à busca insana por algo que já não é mais possível.

O Desespero e a Impossibilidade de Aceitação:

O arco de Liz Sparkle, em A Substância, e a tragédia de Medusa  representam figuras tragicamente presas a um ideal que as consome. Medusa, que é transformada em um monstro, é uma personagem que não pode se libertar de sua condição. Ela vive em uma constante batalha contra sua própria transformação, incapaz de olhar para si mesma sem causar a destruição de tudo ao seu redor.

Liz, igualmente, é uma mulher que se recusa a aceitar o envelhecimento e a transformação natural da vida. Sua resistência a aceitar sua velhice reflete um desespero que, longe de trazer uma resposta ou redenção, a empurra cada vez mais para a perda de sua própria identidade.

A incapacidade de Liz de se confrontar com sua condição a faz, paradoxalmente, mais distante de quem ela realmente é e mais próxima de uma versão distorcida de si mesma.

O Destino e o “Olhar Final”

Na mitologia, Medusa é uma figura isolada e solitária, marcada pela sua maldição, e sua morte. Ou a morte simbólica daqueles que a encaram – é inevitável. A cena final de Liz, rastejando até a estrela da calçada da fama, revela essa tragédia similar: uma mulher que, ao não conseguir aceitar sua condição, se vê forçada a viver em busca de um passado que já não pode ser recuperado.

Liz, como Medusa, é uma vítima de sua própria busca por um ideal irreversível, uma mulher que não consegue encontrar um novo significado para sua existência e que, em última instância, se perde em um ciclo vicioso de negação e frustração.

Medusa por Caravaggio

                 Medusa por Caravaggio

A analogia entre o arco de Liz Sparkle e a tragédia de Medusa em A Substância não é apenas uma questão de similaridade visual, mas de uma transformação simbólica que envolve a perda de humanidade, a luta contra a inevitabilidade do tempo e a busca desesperada por um ideal que nunca poderá ser atingido. Liz, como Medusa, é uma figura condenada a uma existência marcada pela transformação e pela punição, incapaz de se libertar de suas próprias escolhas. O paralelo entre as duas personagens, portanto, serve como uma reflexão profunda sobre os perigos de se apegar a um ideal de juventude e fama, e sobre o preço que se paga quando se recusa a aceitar o envelhecimento e as mudanças naturais da vida.

A Substância” e o Envelhecimento como Horror

Experimentei o poder transformador da Jornada do Herói na minha vida, antes mesmo de saber do que se tratava. Quando comecei a escrever sobre a personagem Sofia, num momento desafiador da minha vida, eu não fazia ideia de que estava, na verdade, trilhando o caminho da Jornada do Herói — ou, no meu caso, da Heroína.

É curioso como algumas descobertas na vida surgem de forma totalmente intuitiva, como se um fio invisível nos conduzisse a uma verdade que estávamos destinados a encontrar. Sem saber, segui os passos de uma estrutura milenar conhecida como monomito, identificada por Joseph Campbell e adaptada por muitos autores, como Christopher Vogler, para nos guiar no processo de contar (e recontar) histórias.

No centro dessa estrutura está a transformação: um herói ou heroína que sai do mundo comum, enfrenta desafios e retorna com uma nova perspectiva, pronto para transformar a si mesmo e o mundo ao seu redor. Foi exatamente isso que aconteceu comigo — e com Sofia.

A Intuição que Conduz a Jornada

Porém, naquela época, eu não tinha sequer ouvido falar sobre a Jornada do Herói, muito menos imaginava seu poder transformador. Tudo começou como uma simples tentativa de colocar em palavras a dor que eu sentia, criando um espaço seguro para processar minhas emoções. Sofia, minha personagem, não era apenas uma ficção: ela era um reflexo de mim mesma, enfrentando medos, derrotas e, eventualmente, descobrindo a coragem que sempre esteve dentro dela. Foi através de Sofia que comecei a imaginar um novo roteiro para minha própria vida.

Ao encontrar redenção para ela, encontrei também para mim. Percebi que, ao projetar sua transformação, eu estava inconscientemente escrevendo meu próprio caminho de cura. Esse processo intuitivo me levou, mais tarde, a estudar a fundo a estrutura da Jornada do Herói e a compreender que, assim como na ficção, podemos reescrever nossas próprias histórias.

A Jornada do Herói: Uma Estrutura Universal

O monomito, ou Jornada do Herói, simplificado por Vogler, é composto por 12 etapas principais, divididas em três grandes atos: Partida, Iniciação e Retorno.

Essas etapas incluem:

  1. Mundo Comum: O ponto de partida, onde o herói vive sua vida cotidiana.
  2. Chamado à Aventura: Algo disruptivo acontece, desafiando o herói a mudar.
  3. Recusa do Chamado: O herói hesita em aceitar a missão.
  4. Encontro com o Mentor: Uma figura de orientação surge para ajudar o herói.
  5. Travessia do Primeiro Limiar: O herói entra no mundo desconhecido.
  6. Testes, Aliados e Inimigos: Ele enfrenta desafios, faz alianças e descobre quem são seus verdadeiros inimigos.
  7. Aproximação da Caverna Oculta: Um momento de preparação para o grande desafio.
  8. Provação: O herói enfrenta seu maior obstáculo.
  9. Recompensa: Ele supera a prova e ganha algo valioso.
  10. Caminho de Volta: O herói retorna ao mundo comum.
  11. Ressurreição: Um último teste confirma a transformação do herói.
  12. Retorno com o Elixir: O herói retorna com o conhecimento ou poder que beneficiará a comunidade.

Ao estudar essa estrutura, percebi que ela não se limita às histórias ficcionais — é também uma ferramenta poderosa para reinterpretarmos e ressignificarmos nossas próprias experiências.

Escrever é Imaginar, Imaginar é Transformar

Há algo incrivelmente poderoso no ato de escrever. Quando colocamos no papel nossos medos, esperanças e desejos, criamos um espaço para a transformação. De maneira idêntica, foi isso que aconteceu comigo. E pode acontecer com qualquer pessoa. Ao escrever sobre Sofia, eu não estava apenas criando uma narrativa: eu estava me reimaginando.

Quando Sofia decidiu ir para Londres, era um reflexo do que eu gostaria de fazer. Dez anos depois, foi exatamente isso que aconteceu: fiz as malas, vim para Londres e, hoje, vivo aqui. Isso mostra como a imaginação, quando materializada em palavras, tem o poder de moldar nossa realidade. Por isso aplico o poder transformador da Jornada do Herói na minha vida.

Essa ideia se conecta com conceitos como fake it till you make it ou, em Portugues, “aja como se”: ao imaginar um novo futuro e, mais importante, materializá-lo em palavras — seja num caderno, num documento digital ou em qualquer outro formato —, começamos a acreditar nessa nova realidade. E é aí que a magia acontece: a transformação interior ganha força e se manifesta no mundo real.

A Jornada do Herói Como Ferramenta de Vida

Hoje, olhando pra trás, vejo como a Jornada do Herói me ajudou a superar momentos difíceis e a encontrar um novo rumo. Contudo, foi esse processo intuitivo que me levou a estudar roteiro, entender as estruturas narrativas e, finalmente, concluir que podemos, sim, escrever o roteiro de nossas vidas. Afinal, as histórias que são contadas não são histórias de vida? Cada um de nós tem o potencial de ser o herói ou a heroína de sua própria história.

Então, se você se encontra em um momento de crise ou transição, talvez seja hora de pegar uma caneta (ou abrir um documento no computador) e começar a escrever. Primeiramente, imagine-se como o protagonista de sua própria jornada. Encare seus desafios como etapas necessárias para o crescimento. E lembre-se: o retorno ao mundo comum, transformado e fortalecido, é apenas o começo de um novo ciclo.

Porque, no final das contas, as histórias que contamos — tanto para os outros quanto para nós mesmos — têm o poder de curar, transformar e inspirar.

Pronto para (re)escrever a sua história?

Jornada do Heroi

Eu, aos 4 anos, com um vestido que meu pai me deu e eu amava!!!

Era uma vez uma menina que aos quatro aninhos ja sabia que queria ser uma transplantadora de coração. Na verdade, ela queria dar àquelas pessoas pessoas com corações debilitados, a oportunidade de viver  mais uma vida e se permitir todas as possibilidades.

Dos 46 para os 47 anos, o coração da própria (agora não mais uma menina) mulher parou. Ela gostou muito da experiência de morrer sem parar de viver, e, como aquelas pessoas de coração debilitado que a menina queria curar, ela aceitou essa nova chance. E sua missão, que nem ela sabia, seria começar curando seu próprio coração.

Aos 49/50 ela experimentou a delicia que é lançar um livro e falar sobre ele com tanto entusiasmo e verdade, em shows de televisão, na Bienal Literária, etc. Ser ouvida e ter sua voz considerada.  Ter retorno de platéias engajadas no assunto.  E se divertir com a sua audiência.

Falando em coração, me cobrem um post sobre “Coração de Estudante” e aquele sonho-real com Milton Nascimento.

O último slide do anexo abaixo marca o inicio de uma nova temporada de Sofia. Essa temporada começou 22/01/2020 quando embarquei pra cá:

The Invisible Ark; A Morte me Cai Bem (Death Suits Me), e Heart Talks (nome provisorio) serao minhas primeiras cirurgias em coracoes feridos ou debilitados.

transplantadoradecoração

 

Rio de Janeiro: Hoje é dia 5 de fevereiro de 2022 e estou passando a limpo uma anotação do dia 4 de agosto de 2019.

 

Dia 9 de abril de 2017 eu fiz 56 anos, ou seja, entrei no nono setênio, que é esse em que estou agora, e há pouco mais de dois anos. Decidi escrever minha autobiografia por setênios e, digamos, pra não deixar ninguém perdido, e caber no tempo razoável para vocês não levantarem entediados, resolvi começar a contar minha vida a partir do início desse meu atual setênio, e já estou sendo repetitiva…

Ai meu Deus! (divagando) Por favor, gente, aguenta um pouquinho mais, eu prometo que vou melhorar até o fim da minha temporada, aqui na Terra, ne?

(muda o tom para firme)

Anotem só uma coisinha no final de todas as nove temporadas aqui na Terra ou em outro lugar, no éter, em outra dimensão, todos nós somos anjos. Nós somos uma legião de anjos que se reconhecem quando se conectam pelo coração, pelo sentimento, como aquelas conexões da natureza vegetal com a natureza animal no filme de ficção Avatar. Não existe ficção. Tudo o que pode ser imaginado, pode existir, até porque existiu em primeiro lugar na imaginação de alguém. No caso do filme Avatar, ele foi desenhado, realizado e assistido por milhares de pessoas no mundo. Outro dia o Zé Mauro me disse que tem um parque temático “Avatar” e comentamos sobre a nossa conexão. Eu comento. Ele entende.

 

(fim da anotação)

 

A respeito da data 09/04/2017: Não tenho certeza, mas acho que a comemoração foi lá em casa, usando um vestido da Lenny que agora vou levar como saída de praia. Contratei um bartender e comprei um monte de bebida que nunca chegou a ser usada. Estava nos estertores daquele modelo.

 

Mas voltando ao dia de hoje, 05/02/2022, eu estou vivendo um dilema que espero que seja resolvido com paz de espírito, porque se não, não vale a pena. Tenho 13 dias até voltar para Londres e até agora a única solução que me foi oferecida foi entregar a Pipi para uma mulher desconhecida que “adora” maltês e que não quer nem que eu saiba sua identidade. Eu hein!! Vou entregar essa cachorrinha que eu me ocupei, ainda que de longe só emocionalmente, para uma emissária entregar a Cruz Vermelha, como a mãe em fuga de Kabul que entrega o filho bebê ao soldado? Não quero ser impolite, não, só que não”.

Era uma vez uma linda Princesa chamada Sofia. Sofia adorava ficar no seu cantinho sonhando, por isso não estava com a menor vontade de sair do aconchego do útero de sua mãe onde esteve por mais de nove meses formando seu corpo e sua imaginação. Precisou ser retirada a fórceps daquele lugar escuro e quentinho, onde se conectava através do coração com outros corações espaço afora. De mais a mais, Sofia sabia (pois ouvia tudo do útero e não era boba) que sua mãe estava sonhando em dar à luz a um lindo principezinho louro de olhos azuis. Ela não entendia de onde sua mãe pretendia tirar esses genes, mas tinha mais no que pensar. Quando chegou a essa dimensão encontrou um enxoval todo branco e azul claro e azul se tornou sua cor preferida. Mamãe ficou decepcionada quando viu uma menina, mas fez questão de disfarçar e colocar um sorriso nas lábios. Mamãe estava com mais de 30 anos e, para a época em que a princesa Sofia nasceu, era uma gravidez tardia.
A mãe da princesa Sofia não era uma rainha condecorada com aliança de casamento, era uma mãe solteira. O pai de Sofia era casado, mas com outra mulher. Claro que a Princesa Sofia não sabia nada dessa história e cresceu ouvindo as versões que lhe contavam. A linda princesinha passou seus primeiros anos de vida num confortável castelinho ao lado da mãe e da avó materna. Ela era cercada de carinho e tinha quase todos seus desejos realizados. Foi para a escola antes dos três anos e tinha medo de ser machucada pelas crianças maiores que corriam durante o recreio.
Sua personalidade era um misto de tímida e rebelde, se é que isso é possível. Mas assim era. Obediente ela nunca foi. Seu primeiro trauma de infância foi ao falar quando deveria calar e a professora lhe tirou o prêmio de um sorteio. Mas professoras podem fazer isso com princesas?! Nesse caso, foi exatamente o que aconteceu. A mãe da princesa foi numa loja de brinquedos e deixou a Princesa Sofia escolher o que ela quisesse, mas a princesinha queria porque queria a mobília de caixa de fósforo que havia ganhado (e perdido) no sorteio. Ela nunca mais se esqueceu daquela punição injusta e daquele dia em diante decidiu que ia falar tudo o que quisesse, quando quisesse, já que fora punida por se expressar.

Essa é minha coleção da La Pléiade. Mas também tenho completa em Português

Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, foi um divisor de águas na minha vida. Cheguei a dividir o mundo entre as pessoas que leram e as que não leram essa obra. Não sei se é possível simplesmente ler essa obra-prima sem senti-la, de todo modo não estou falando de ler “mecanicamente”, estou falando de sentir os sentimentos daquelas personagens, com suas dores e encantamentos.
Uma obra para transformar a vida de quem se dispuser a entrar nessa jornada. Comecei a ler em 2013, sozinha, e em 2014 me juntei a um grupo que concluiu a leitura em 2016.
Escrevendo agora essa data, me atento à coincidência: justamente em 2016, quando estava concluindo a leitura do sétimo volume, me senti muito estranha. No dia do meu aniversário de 55 anos, acordei sozinha num quarto de hotel em Palo Alto me sentindo muito estranha. No dia anterior já havia passado a tarde no hospital de Stanford tentando diagnosticar uma dor no pé. Só que acabei topando com um médico surfista lindo e bronzeado. Quando levantei o olhar e dei de cara com aquele deus musculoso e dourado com olhos turquesa paraíba tive um ataque de riso de puro nervosismo. Quem achar que eu estou exagerando o nome dele é Davi Pomeranz, podem conferir, aquela beleza ainda dura pelo menos uns 20 anos.
Em 2015 já havia feito um movimento de saída do Brasil me candidatando a uma bolsa de 10 meses em Stanford. Não foi apenas pela intenção de sair do Brasil (de dar um outro sentido à vida?)que me candidatei.Sou, de fato, sou uma jornalista apaixonada por esse ofício que atualiza suas ferramentas mas conserva sua essência primordial que é fundamentalmente coletiva, social, voltada para a vida em sociedade, para a justiça e o bem estar individual e coletivo. Eu tenho esse amor pelo coletivo, por aquele que eu não posso tocar mas que estou tocando de uma forma indireta, como se para evitar o envolvimento, o apego. #workinprogress

Estava aqui pensando no significado de se tornar e, por algum motivo desconhecido por mim, devenir pulou na frente, na minha memória, embora eu estivesse escrevendo em Português Brasileiro. Pode parecer desnecessário, sendo eu uma brasileira,  especificar que o Português que eu falo é Brasileiro (por que não botar nosso Brasileiro em caixa alta?). Os franceses, por exemplo, dizem que nós falamos o Brésilien  e eu acho muito sensato da parte deles.  Nossa língua, principalmente falada, não tem absolutamente nada a ver com a falada em Portugal. Uma vez, numa fila de check-in em Londres, pensei que estivessem falando alguma língua do Leste europeu e era Português!!! Eu não tinha entendido uma palavra! Isso pra não mencionar a lógica, que se é outra ao pensar, obrigatoriamente tem que ser outra ao falar e escrever. Leia mais

À esquerda: eu no colo da minha mãe, minha avó ao lado, na minha primeira viagem internacional. À direita, meu irmão pequeno com os pais dele. Circulado em verde, meu pai biológico e minha avó paterna, que nunca conheci. A timidez fantasiada de bailarina, no carnaval de 1966.

Em algum dia do final da década de 1950, em Campos do Jordão, provavelmente em um período de férias, Francisco Kenworthy Azevedo e  Palmyra Cordeiro de Mello de Garibaldi Pereira se conheceram e se apaixonaram. Ele, paulistano e filho de um rico industrial do ramo têxtil; ela, uma bela e jovem advogada nascida em Manaus, mas que morava no Rio de Janeiro desde os três anos de idade quando seus pais mudaram para a capital federal.

Francisco beirava os 30 anos, era casado e tinha quatro filhos. O mais velho, que levava seu nome, era chamado pelo apelido Baby. Esse primogênito teve sérios problemas de diabetes, e  veio a falecer ainda rapaz, depois de um transplante de fígado. Não vou tentar ir além porque aí começam as versões.  E versão por versão, fico com a única que me foi contada por mãe, pai, primos e primas: sou fruto de uma paixão avassaladora. Gostei e copiei!

Como hoje é “Dia dos Pais”, a pauta é Francisco Kenworthy Azevedo, meu progenitor. Não sei se esse ano, assim de bate-pronto, consigo ter esse desprendimento a ponto de homenagear essa personagem que entrou com metade dos cromossomos que me deram à vida. Estou me reaproximando dele faz pouco tempo. Ele que morreu dia 28 de março de 1984, doze dias antes de eu completar 23 anos. Ele morreu com a idade que eu tenho hoje, 28 dias depois de completá-la. E só há pouco tempo entendi que as pessoas que marcaram a minha vida só vão morrer junto comigo.

Ao todo, Francisco teve seis filhos. Com certeza, cada um de sua descendência teve seu próprio pai. Na minha vida, essa personagem pai entrou em limitadas participações especiais. Como aqueles atores convidados que só participam das duas primeiras semanas das novelas e depois desaparecem, sabe? Como nossa relação não seguia o modelo usual, demorei pra entender. Aliás, nem sei se entendi.

A partir dos meus 18 anos, empreendi uma “cruzada” para reconquistar ou simplesmente conquistar meu pai. Mas não houve, digamos, entrosamento. Uma noite eu sai com a minha prima, Marina, em São Paulo, dirigindo um dos carros dele. Fomos para a casa da Helô, irmã da Marina, nos jardins. Voltando sozinha, me deparei com uma bifurcação e peguei o caminho errado. Eu tinha 18 anos, não existia celular, mídia social, Waze, GoogleMaps, nada disso. Depois de passar horas perdida por São Paulo, contratei um táxi na Praça da Sé e o segui até a casa do meu pai, em Higienópolis. Entrei em casa animadíssima contando minha aventura noturna por São Paulo, mas o homem estava surtado e foi grosseiro comigo. Como se eu fosse uma criança. Não me criou e, quando me sinto uma adulta, vem me dar bronquinha, qual é?! Fiquei vexada, fui para o meu quarto e no dia seguinte peguei o avião de volta para o Rio.

Vi meu pai pela primeira vez (que eu me lembre) quando eu tinha uns nove ou 10 anos. Tivemos um encontro clandestino. Sim, clandestino, porque o marido da minha mãe era muito ciumento, então ela resolveu apagar a figura do meu pai da minha vida. Na verdade, da vida dela, e eu fui a reboque. A segunda vez que vi meu pai foi no meu aniversário de 15 anos, com a minha mãe já separada do tal marido ciumento. Mas aí a nossa não-relação já não existia. Aos 18 anos, ele foi convidado para o meu almoço de aniversário, afinal, ele estava me dando um carro.  Fiquei quase todo tempo com os meus amigos e, ao final, fui deixá-lo no aeroporto com a minha mãe. Foi depois desse dia que tentei me aproximar.

Da nossa convivência quando eu ainda era um bebê, não tenho nenhum registro consciente. Eu não sei o que é  uma relação de pai e filha, não tive essa oportunidade. Para mim, Francisco sempre foi um homem. Um homem sem rosto que me mandava presentes magníficos e vestidos (como o da foto acima) quando eu era criança Como esquecer daquele edifício-garagem de quatro ou cinco andares com elevadores? Aquilo foi um must , um símbolo que definia poder, que me mostrava que a realidade podia superar, em muito, os meus sonhos.

Naquela época da minha infância, ainda muito tenra, eu devia ter uns quatro anos, estava na moda um brinquedo que era um posto de gasolina em cima de um compensado. Eu devo ter pedido um pra minha mãe e ela deve ter repassado a encomenda para o meu pai. Um belo dia chega lá em casa uma super garagem com vários andares, heliponto no terraço, várias bombas de gasolina no térreo, um escândalo! Tipo “coisa de paulista”.  Eu nunca tinha visto nada parecido e nem sei se desejaria algo tão incrível, mas aquilo ali foi um marco determinante para eu atribuir superpoderes para esse homem sem rosto que morava em outro estado e diziam que era meu pai. Sim, até os cinco anos, eu tinha um pai e podia me referir a ele como pai.

Mas antes de eu completar seis anos, minha mãe se casou novamente e resolveu trocar “meu pai”. Assim, de um dia para o outro, apareceu um cara que a minha mãe conheceu na praia e determinou que eu devia chamá-lo de PAI. Bem, agora que todo mundo dessa narrativa já morreu está tudo resolvido? Claro que não. Mas eu vou perseverando na minha cura.

Hoje, contando sobre aquele posto de gasolina, penso em usar esse episódio para extrair a crença positiva de que minhas realizações podem superar, em muito, meus sonhos. Hoje sou adulta e responsável pela minha vida, pelo que penso e sinto. Eu posso recriar minha história olhando as coisas de outra maneira. Eu agradeço pela família que eu tive. Eles foram as pontes para eu me transformar naquilo que sou e quero ser. Ainda tenho muito que me aprimorar e essa é a minha missão aqui na Terra: ser cada dia o melhor que eu conseguir. Espero reescrever esse texto com uma visão muito mais amadurecida e espiritualizada para compartilhar.#somostodosum