“A Substância” e o Envelhecimento como Horror

Ontem assisti ao filme A Substância, com roteiro e direção da francesa Coralie Fargeat, e fiquei intrigada com os diversos ângulos possíveis para discussão. Minha reflexão, no entanto, não abordará aspectos técnicos, como roteiro, iluminação ou direção, nem focará no gênero do filme. Vou direto ao tema!

O gênero “Body Horror” e o impacto emocional

Body horror” é um gênero que eu nunca havia assistido porque não sou nem um pouco chegada a filme de terror. Ainda que como roteirista eu tenha o hábito de observar narrativas de forma técnica, vou passar ao largo desse tipo de comentários. Prefiro focar na temática central de A Substância.

Embora à primeira vista o tema central pareça ser apenas o envelhecimento físico, eu fui pega por outra perspectiva. Sendo eu uma mulher com a mesma idade da atriz Demi Moore, sem filhos ou família como a personagem Liz Sparkle, a busca pela relevância pessoal em meio ao envelhecimento e aos desafios da solidão foi o que mais ressoou em mim.

Liz e Sue: duas faces do tempo e a mesma substância

Liz Sparkle, descartada como um lenço de papel usado ao completar 50 anos, se confronta com o vazio da sua vida. Ela tem dinheiro, beleza, mas sua vida não tem mais sentido. Sua versão jovem, “Sue”, por outro lado, diverte-se com baladas, sexo e rock’n’roll. “Sue” nos mostra as escolhas de Liz na juventude e o impacto no seu futuro. A energia de “Sue” é intensa, mas rasa, preenchendo qualquer sinal de solidão com diversão efêmera.

Na fase madura, o tempo livre de Liz revela seu vazio existencial, escancarado como uma ferida aberta. Sua vida fora dos palcos não tem mais o menor significado. Por isso, ela não pondera os riscos ao recorrer a uma substância desconhecida vendida no mercado negro. Isso reflete seu desespero por preencher um vazio que a fama não consegue mais ocultar.

O palco, o espelho e a identidade perdida

Sem interesse pelo sexo desenfreado ou pelas baladas, Liz busca reconstruir sua autoestima pelo caminho mais ‘fácil’ e superficial. Mesmo despertando fascínio em um antigo colega, ela não consegue admirar-se ao ver sua bela imagem refletida no espelho. Seu ‘amor’ próprio está condicionado à validação de um público virtual. Um contato distante, mediado, e desprovido de qualquer intimidade real. Quando seu ‘tapete é puxado’ e esse vínculo se rompe, a identidade de Liz é igualmente dilacerada. Sua existência perde o sentido. Diante desse vazio, ela apela à substância.

É bem verdade que ela tenta recorrer a outras alternativas na sua área. Ela sugere um talk show ou um programa de culinária ao seu agente. Quer dizer, ex-agente, porque ele também a descarta sem piedade. E isso me faz pensar nas mães de família que dedicam a vida ao seu “público” — marido e filhos — e, de certa forma, também são descartadas  quando perdem relevância, ou seja,  quando não tem muito mais a oferecer. E não só elas, eles também. Como se o envelhecimento fosse uma doença contagiosa.

O envelhecimento físico e o “eu” imortal

O envelhecimento físico é inexorável. Ele representa a parte mais visível — mas não a única — da perda de energia com o passar dos anos. Com o tempo, também se dissipa a empolgação pelos “garotos bonitinhos” que ocupam a imaginação de adolescentes românticas à procura de príncipes.

A grande diferença está em como cada uma reage a essas mudanças. Enquanto Liz recorre a uma substância desconhecida e perigosa, o mundo está cheio de exemplos de mulheres mais velhas que começam a pintar, escrever ou empreender. Nutrir o “eu” criativo é uma forma de transformar a maturidade em uma fase plena de significados e realizações.

 

 

A energia psíquica e criativa do “eu” não envelhece nem se deteriora. Desde que seja cuidada! As experiências da vida podem lapidar esse “eu” ou deixá-lo estraçalhado  e vulnerável. Mas, mesmo assim, ele permanece carregado de potencial para se regenerar. Esse “eu” é nossa essência, nossa verdadeira substância.

Esse, para mim, é o “x” da questão, ou do filme: a importância de nutrir esse “eu”, essa essência, para quando o corpo não tiver mais energia ou interesse nas baladas. Liz, por exemplo, não cultivou nada além da beleza física durante seus anos dourados. E inevitavelmente se deparou com o vazio.

O poder transformador da criatividade na maturidade

Mas é possível, e recomendável,  fazer diferente. Mesmo para quem não depende de beleza e juventude para a carreira. E, mesmo para quem não tem carreira alguma, a criatividade é um “artigo” valioso que pode e deve ser cultivado.

É amplamente reconhecido que a criatividade e o potencial humano não têm data de validade. Basta olhar para exemplos de figuras como Henri Matisse, Toni Morrison, Maya Angelou e Agnès Varda. Essa última, cineasta e artista plástica, produziu até os últimos anos de vida obras profundamente marcantes, como Varda par Agnès, na qual refletia sobre sua trajetória com o frescor da descoberta.

Matisse, por exemplo, quando já estava em uma fase avançada da vida. Fez uma das maiores inovações de sua carreira ao criar os recortes, uma técnica que ele explorou até os 80 anos. Mesmo enfrentando limitações físicas devido à sua saúde, ele conseguiu continuar criando obras inovadoras como A Dança e A Perna de Cadeira.

Nossa Fernanda e sua Substância

Já Toni Morrison ganhou o Prêmio Nobel de Literatura aos 62 anos.  Ela continuou a escrever e a inspirar novas gerações de leitores até sua morte, produzindo trabalhos que foram profundamente influentes, como Amado e O Olho Mais Azul.

E para arrematar com um exemplo brasileiro de logenvidade criativa, temos Fernanda Montenegro, nossa dama do teatro e do cinema. Aos 95 anos, continua brilhando e inspirando. Essas pessoas não tentaram voltar no tempo; elas aprenderam a dançar com ele.

Reflexões sobre identidade e aceitação em A Substância

Apesar de parecerem duas pessoas,  “Sue” e Liz  são exatamente a mesma, em fases diferentes da vida. A versão “jovem” odeia a  versão “velha” porque rejeita o futuro que ela representa. Ou seja, ela rejeita a si mesma. Como a sociedade que a rejeita, ela também valoriza a juventude e teme o envelhecimento.

Para mim, o filme convidou às seguintes reflexoes:

Como se preparar para as futuras transformações?

Como usar o “eu” criativo para superar o vazio deixado pela perda de vigor físico?

 

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