Uma Análise Metafórica

O arco da personagem Liz Sparkle, em A Substância, evoca a figura mitológica de Medusa. Ambas as personagens, embora de contextos diferentes, compartilham uma tragédia comum: a transformação irreversível. Resultado de sua relação com o tempo, a beleza e a busca por um ideal inatingível. A analogia entre Liz e Medusa não é apenas visual. Ambas compartilham de um destino trágico, refletindo as complexidades do envelhecimento, da autossabotagem e da luta contra o destino.

A Transformação e a Decadência de Medusa e Liz

Medusa, na mitologia grega, é uma mulher bela transformada em um monstro pela punição divina. Tem serpentes em seu cabelo e um olhar que transforma tudo o que toca em pedra. Esse processo de transformação é fundamental para compreender o paralelo com Liz, cuja busca desesperada por juventude e fama resulta em uma transformação igualmente monstruosa.

A cena final, com Liz cercada de vísceras e rastejando até a estrela da calçada da fama, remete à figura de Medusa, com seu olhar petrificante e sua aparência decadente. Liz, como Medusa, se vê aprisionada em uma imagem que já não pode mais sustentar. Mas que persiste até o fim, levando-a à autodestruição. Sua transformação é fruto de uma busca constante para manter um status e uma identidade que, inevitavelmente, se desintegram.

O Olhar Perigoso de Medusa e a Punição de Liz:

Medusa, ao longo de sua existência, se torna uma figura temida. Seu olhar é fatal, petrificando aqueles que a encaram. Em sua solidão, ela se torna uma personificação da punição por desafiar o que é imutável – no caso, a passagem do tempo.

Da mesma forma, Liz busca congelar o tempo, lutando contra a inevitabilidade do envelhecimento e da obsolescência social. Sua busca incessante por reconhecimento e validação é, em última análise, uma tentativa de escapar das punições que a sociedade impõe aos que envelhecem, especialmente às mulheres.

Liz, em sua negação, acaba se tornando uma figura igualmente petrificada: uma mulher que, ao tentar manter sua juventude e beleza, se vê transformada em algo irreconhecível. Sua vida e identidade reduzidas à busca insana por algo que já não é mais possível.

O Desespero e a Impossibilidade de Aceitação:

O arco de Liz Sparkle, em A Substância, e a tragédia de Medusa  representam figuras tragicamente presas a um ideal que as consome. Medusa, que é transformada em um monstro, é uma personagem que não pode se libertar de sua condição. Ela vive em uma constante batalha contra sua própria transformação, incapaz de olhar para si mesma sem causar a destruição de tudo ao seu redor.

Liz, igualmente, é uma mulher que se recusa a aceitar o envelhecimento e a transformação natural da vida. Sua resistência a aceitar sua velhice reflete um desespero que, longe de trazer uma resposta ou redenção, a empurra cada vez mais para a perda de sua própria identidade.

A incapacidade de Liz de se confrontar com sua condição a faz, paradoxalmente, mais distante de quem ela realmente é e mais próxima de uma versão distorcida de si mesma.

O Destino e o “Olhar Final”

Na mitologia, Medusa é uma figura isolada e solitária, marcada pela sua maldição, e sua morte. Ou a morte simbólica daqueles que a encaram – é inevitável. A cena final de Liz, rastejando até a estrela da calçada da fama, revela essa tragédia similar: uma mulher que, ao não conseguir aceitar sua condição, se vê forçada a viver em busca de um passado que já não pode ser recuperado.

Liz, como Medusa, é uma vítima de sua própria busca por um ideal irreversível, uma mulher que não consegue encontrar um novo significado para sua existência e que, em última instância, se perde em um ciclo vicioso de negação e frustração.

Medusa por Caravaggio

                 Medusa por Caravaggio

A analogia entre o arco de Liz Sparkle e a tragédia de Medusa em A Substância não é apenas uma questão de similaridade visual, mas de uma transformação simbólica que envolve a perda de humanidade, a luta contra a inevitabilidade do tempo e a busca desesperada por um ideal que nunca poderá ser atingido. Liz, como Medusa, é uma figura condenada a uma existência marcada pela transformação e pela punição, incapaz de se libertar de suas próprias escolhas. O paralelo entre as duas personagens, portanto, serve como uma reflexão profunda sobre os perigos de se apegar a um ideal de juventude e fama, e sobre o preço que se paga quando se recusa a aceitar o envelhecimento e as mudanças naturais da vida.

A Substância” e o Envelhecimento como Horror

Ontem assisti ao filme A Substância, com roteiro e direção da francesa Coralie Fargeat, e fiquei intrigada com os diversos ângulos possíveis para discussão. Minha reflexão, no entanto, não abordará aspectos técnicos, como roteiro, iluminação ou direção, nem focará no gênero do filme. Vou direto ao tema!

O gênero “Body Horror” e o impacto emocional

Body horror” é um gênero que eu nunca havia assistido porque não sou nem um pouco chegada a filme de terror. Ainda que como roteirista eu tenha o hábito de observar narrativas de forma técnica, vou passar ao largo desse tipo de comentários. Prefiro focar na temática central de A Substância.

Embora à primeira vista o tema central pareça ser apenas o envelhecimento físico, eu fui pega por outra perspectiva. Sendo eu uma mulher com a mesma idade da atriz Demi Moore, sem filhos ou família como a personagem Liz Sparkle, a busca pela relevância pessoal em meio ao envelhecimento e aos desafios da solidão foi o que mais ressoou em mim.

Liz e Sue: duas faces do tempo e a mesma substância

Liz Sparkle, descartada como um lenço de papel usado ao completar 50 anos, se confronta com o vazio da sua vida. Ela tem dinheiro, beleza, mas sua vida não tem mais sentido. Sua versão jovem, “Sue”, por outro lado, diverte-se com baladas, sexo e rock’n’roll. “Sue” nos mostra as escolhas de Liz na juventude e o impacto no seu futuro. A energia de “Sue” é intensa, mas rasa, preenchendo qualquer sinal de solidão com diversão efêmera.

Na fase madura, o tempo livre de Liz revela seu vazio existencial, escancarado como uma ferida aberta. Sua vida fora dos palcos não tem mais o menor significado. Por isso, ela não pondera os riscos ao recorrer a uma substância desconhecida vendida no mercado negro. Isso reflete seu desespero por preencher um vazio que a fama não consegue mais ocultar.

O palco, o espelho e a identidade perdida

Sem interesse pelo sexo desenfreado ou pelas baladas, Liz busca reconstruir sua autoestima pelo caminho mais ‘fácil’ e superficial. Mesmo despertando fascínio em um antigo colega, ela não consegue admirar-se ao ver sua bela imagem refletida no espelho. Seu ‘amor’ próprio está condicionado à validação de um público virtual. Um contato distante, mediado, e desprovido de qualquer intimidade real. Quando seu ‘tapete é puxado’ e esse vínculo se rompe, a identidade de Liz é igualmente dilacerada. Sua existência perde o sentido. Diante desse vazio, ela apela à substância.

É bem verdade que ela tenta recorrer a outras alternativas na sua área. Ela sugere um talk show ou um programa de culinária ao seu agente. Quer dizer, ex-agente, porque ele também a descarta sem piedade. E isso me faz pensar nas mães de família que dedicam a vida ao seu “público” — marido e filhos — e, de certa forma, também são descartadas  quando perdem relevância, ou seja,  quando não tem muito mais a oferecer. E não só elas, eles também. Como se o envelhecimento fosse uma doença contagiosa.

O envelhecimento físico e o “eu” imortal

O envelhecimento físico é inexorável. Ele representa a parte mais visível — mas não a única — da perda de energia com o passar dos anos. Com o tempo, também se dissipa a empolgação pelos “garotos bonitinhos” que ocupam a imaginação de adolescentes românticas à procura de príncipes.

A grande diferença está em como cada uma reage a essas mudanças. Enquanto Liz recorre a uma substância desconhecida e perigosa, o mundo está cheio de exemplos de mulheres mais velhas que começam a pintar, escrever ou empreender. Nutrir o “eu” criativo é uma forma de transformar a maturidade em uma fase plena de significados e realizações.

 

 

A energia psíquica e criativa do “eu” não envelhece nem se deteriora. Desde que seja cuidada! As experiências da vida podem lapidar esse “eu” ou deixá-lo estraçalhado  e vulnerável. Mas, mesmo assim, ele permanece carregado de potencial para se regenerar. Esse “eu” é nossa essência, nossa verdadeira substância.

Esse, para mim, é o “x” da questão, ou do filme: a importância de nutrir esse “eu”, essa essência, para quando o corpo não tiver mais energia ou interesse nas baladas. Liz, por exemplo, não cultivou nada além da beleza física durante seus anos dourados. E inevitavelmente se deparou com o vazio.

O poder transformador da criatividade na maturidade

Mas é possível, e recomendável,  fazer diferente. Mesmo para quem não depende de beleza e juventude para a carreira. E, mesmo para quem não tem carreira alguma, a criatividade é um “artigo” valioso que pode e deve ser cultivado.

É amplamente reconhecido que a criatividade e o potencial humano não têm data de validade. Basta olhar para exemplos de figuras como Henri Matisse, Toni Morrison, Maya Angelou e Agnès Varda. Essa última, cineasta e artista plástica, produziu até os últimos anos de vida obras profundamente marcantes, como Varda par Agnès, na qual refletia sobre sua trajetória com o frescor da descoberta.

Matisse, por exemplo, quando já estava em uma fase avançada da vida. Fez uma das maiores inovações de sua carreira ao criar os recortes, uma técnica que ele explorou até os 80 anos. Mesmo enfrentando limitações físicas devido à sua saúde, ele conseguiu continuar criando obras inovadoras como A Dança e A Perna de Cadeira.

Nossa Fernanda e sua Substância

Já Toni Morrison ganhou o Prêmio Nobel de Literatura aos 62 anos.  Ela continuou a escrever e a inspirar novas gerações de leitores até sua morte, produzindo trabalhos que foram profundamente influentes, como Amado e O Olho Mais Azul.

E para arrematar com um exemplo brasileiro de logenvidade criativa, temos Fernanda Montenegro, nossa dama do teatro e do cinema. Aos 95 anos, continua brilhando e inspirando. Essas pessoas não tentaram voltar no tempo; elas aprenderam a dançar com ele.

Reflexões sobre identidade e aceitação em A Substância

Apesar de parecerem duas pessoas,  “Sue” e Liz  são exatamente a mesma, em fases diferentes da vida. A versão “jovem” odeia a  versão “velha” porque rejeita o futuro que ela representa. Ou seja, ela rejeita a si mesma. Como a sociedade que a rejeita, ela também valoriza a juventude e teme o envelhecimento.

Para mim, o filme convidou às seguintes reflexoes:

Como se preparar para as futuras transformações?

Como usar o “eu” criativo para superar o vazio deixado pela perda de vigor físico?

 

Essa é minha coleção da La Pléiade. Mas também tenho completa em Português

Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, transcende qualquer noção de uma leitura excepcional e enriquecedora. Para mim, foi uma imersão em um universo que desvelou camadas antes invisíveis da realidade. Uma experiência que me proporcionou, ouso dizer, uma verdadeira expansão de consciência.

É como se Proust enxergasse além do que normalmente somos capazes de ver. A maneira como ele captura nuances da vida das pessoas e a capacidade de transmiti-las parece transcender os limites da linguagem. Ele não apenas teve o tempo, mas também o talento e a perseverança para transformar essa percepção única em palavras.

Ele nos ensina que o tempo não é linear, mas sim um labirinto onde o passado e o presente se entrelaçam de maneira imprevisível. A famosa cena da madeleine é apenas a mais emblemática de uma série de momentos que mostram como as memórias involuntárias podem nos reconectar com quem fomos, enquanto nos ajudam a compreender quem somos. É uma narrativa que exige de nós não apenas atenção, mas entrega – uma espécie de pacto silencioso com o autor, em que aceitamos abandonar a pressa do cotidiano para mergulhar na contemplação dos detalhes.

As Grandes Transições da Modernidade

Enquanto desvela a alma humana, Proust nos apresenta um mundo em transformação. Ele escreve a partir do limiar de dois séculos, retratando com uma precisão quase documental as mudanças que marcaram o fim do século XIX e o início do século XX. É uma época de transições: a aristocracia cede espaço à ascensão da burguesia, os salões da alta sociedade começam a perder o brilho exclusivo e a modernidade emerge com suas inovações tecnológicas – como o relógio de pulso, os automóveis e as linhas de trem que encurtam distâncias, mas, paradoxalmente, ampliam o abismo entre as pessoas.

Proust não apenas narra esses eventos; ele os vive e os faz viver em nós. O Caso Dreyfus, a Primeira Guerra Mundial, a mudança no papel social das mulheres e o novo ritmo da vida urbana não são apenas pano de fundo para sua narrativa. Esses eventos são incorporados aos dramas pessoais e coletivos de seus personagens, tornando-se inseparáveis da introspecção psicológica que define sua obra.

Ler Proust é caminhar pelos salões da alta sociedade francesa como um observador privilegiado. É perceber, através de suas descrições, como as estruturas de poder e status se reorganizam, enquanto o comportamento humano, em sua essência, permanece inalterado. As ambições, as paixões, as fraquezas e os anseios descritos por Proust são, de forma impressionante, tão contemporâneos hoje quanto eram em sua época.

Uma Obra para Poucos?

Sempre me pergunto por que tão poucas pessoas se aventuram a ler toda a obra de Proust. Todos conhecem a famosa madeleine, mas quantos realmente mergulharam nos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido?

Durante a pandemia de Covid-19, coordenei um grupo de leitura online para explorar a obra, e apenas três participantes chegaram ao final do primeiro volume. Nenhum deles continuou para o segundo, adiando a leitura para uma “outra ocasião” – um adiamento que sabemos, no fundo, que jamais se concretizará.

Será que é mesmo a falta de tempo a desculpa verdadeira? Ou seria o ritmo exigente da narrativa de Proust que assusta, em um mundo acostumado a respostas rápidas e gratificações imediatas? Proust exige paciência, concentração e uma disposição para explorar os recantos mais escondidos da mente e da memória. Talvez isso seja o que afasta muitos leitores, mas é também o que torna sua obra tão recompensadora para aqueles que se dispõem a enfrentá-la.

Uma Experiência Transformadora

Em Busca do Tempo Perdido é, para mim, a obra-prima definitiva porque nos força a ver o mundo de outra forma. Cada descrição minuciosa, cada frase longa e cheia de nuances, nos convida a reconsiderar o que damos como certo na vida. Proust me ensinou a desacelerar, a prestar atenção ao invisível, a valorizar os momentos que parecem insignificantes – porque, no fundo, é ali que reside a essência da vida.

Ler Proust foi uma experiência transformadora, um divisor de águas na minha vida. Ele não apenas ampliou minha compreensão do mundo, mas também me fez questionar o que é verdadeiramente essencial. E, ao final da leitura, senti que não havia apenas conhecido novos personagens ou um novo período histórico; havia conhecido uma nova versão de mim mesma.

Proust nos lembra que o tempo não se perde. O que se perde é a nossa capacidade de perceber sua profundidade e de nos conectar com ele. Sua obra não é apenas um convite à leitura, mas um convite à vida – à vida vista com os olhos de quem sabe que, no fundo, são os detalhes e as memórias que realmente importam.